Monday, September 02, 2013
In memoriam do André
O André Lages era uma "figura" de Carrazeda de
Ansiães.
O André era o comerciante que vendia tudo o que o
carrazedense necessitava: o bacalhau e o polvo para o Natal; o parafuso e o
prego para a bricolage caseira; a pedra
de lousa e o pilão para a escola primária; o pesticida e o herbicida para a
horta; a “nabinha” e a semente para o “renovo”;
o unguento e a mezinha para o padecimento, o baraço, a vassoura, as
tenazes, o Borda D`Água, o rolo fotográfico, o tabaco, as pilhas, a fotocópia……
Podia-se procurar por todo lado, porém o que faltava só se encontrava na “Casa
Lages”. Durante longos anos foi autossuficiente para todas (ou quase) as
necessidades do concelho. Porque ele tinha um sentido incomum de antecipação e
oportunidade!
Nos tempos “heroicos” da Rádio Ansiães procedia à
transmissão das emissões da liturgia de domingo valendo-se da sua arte para
produzir e modificar os mais variados apetrechos de recolha do som das missas
num intricado, meticuloso e elaborado circuito, que, por mais estranho que nos
parecesse, captava todo o enredo sonoro da Igreja Matriz. As manhãs de domingo
abriam com a missa dominical sob a orientação técnica e os comentários
inconfundíveis do André Lajes. Aos Sábados comentava a atualidade religiosa num
programa radiofónico que produziu durante anos.
Tudo era registado em escrita: o tempo do ato religioso, o número de
presentes, os elementos do coro, a duração da prédica do saudoso padre
Virgílio, as canções, os incidentes técnicos, as músicas difundidas. Tudo registado
para memória futura.
Mas o que mais me espantava era a sua organização num
comércio que parecia desorganizado. Tudo tinha o seu lugar, devidamente
etiquetado com todas (e mais algumas) as notas que respeitavam ao artigo. Qualquer
solicitação não recolhia muita espera tal a rapidez com que o mercadoria era
encontrada. A organização, o sentido prático e a inventiva tinha visibilidade
no seu famoso lápis, que era esferográfica, borracha, navalha, alfinete, chave
de fendas…
E a bicicleta (um auto em circulação para evitar a poluição,
substitui descapotável ou furgão, dá saúde ao coração) era a imagem do André:
frugal, utilitária, engenhosa, imaginativa e, perdoem-me os mais sisudos, até
infantil, por isso, a ternura em movimento.
Carrazeda perde o André e com ele vai um pouco da nossa alma
carrazedense. Descanse em Paz!
Francisco
Orgulhava-se da égua da família e o nascimento de um potro era o acontecimento mais importante da sua vida. Garboso cavalgava-a pelas ruas da vila, ou segurava as rédeas, sentado na carroça, como se soubesse gritar a expressão do filme "I`m the King of the world!"
Na escola, Francisco era a simplicidade em pessoa, sempre de aspecto andrajoso, sujo e de "ranho" comprido a sair-lhe do nariz, gaguejava monossílabos se interrogado e, embora só se se pudesse aproximar dele tapando o nariz, tal era o cheiro nauseabundo que exalava, despertava a simpatia de todos. As horas mais felizes eram as do recreio: tomava-se o leite escolar e respirava-se o ar da liberdade.
Festejava os sucessos com uma alegria genuína esticando bem o peito para fora e sorrindo de boca escancarada. Reagia às pequenas injustiças, as que compreendia, de modo exuberante, profundamente sentido: emudecia fulo ou manifestava-se com poucas palavras esticando bem o dedo acusatório. Em caso de alguma maldade, se era chamado à atenção, baixava a cabeça envergonhado ou então encolhia os ombros em tom de desafio.
Conseguiu aprender a desenhar e a conhecer todas as letras, porém juntar mais que duas revelou-se uma tarefa impossível. Talvez nunca tivesse sentido também muito interesse em aprender a ler, pois o seu mundo se bastava à barraca, aos cavalos, a um bocado de pão e a muita liberdade.
Filho da miséria e do desleixo social encontrou a morte de uma forma miserável. Francisco era de todos os mortais que conheci o que menos merecia essa “sorte madrasta”.